Nirvana: "toda aquela música é um testemunho da visão artística de Kurt"
Lá em 2014, o baixista do NIRVANA, Krist Novoselic, foi entrevistado pela revista Rolling Stone pelo lendário jornalista, David Fricke. Seguem alguns trechos:
"Tenho ouvido muito NIRVANA ultimamente e tem muita bagagem que vem com isso tudo", diz o baixista Krist Novoselic em uma manhã de Julho/2014, para uma entrevista à revista Rolling Stone a respeito do processo de ouvir o material. "Traz muitas memórias..., memórias boas, memórias dolorosas. Mas é música boa, é um rock bom”.
Novoselic falou a respeito do último álbum lançado pelo NIRVANA, “In Utero”, e do último ano de vida de Cobain - antes do cantor cometer suicídio em Abril/1994. O ambiente da entrevista foi algo bem afastado da loucura do rock: uma sala de leitura infantil numa biblioteca pública em Longview, Washington, a mais ou menos 01 hora ao sul da cidade de Aberdeen, onde Novoselic e Cobain se conheceram em 1987 e formaram o que se tornou o NIRVANA. Novoselic, agora com 48 anos, é ativo na política do Estado e está estudando em uma universidade para obter o diploma em Ciências Sociais.
Ele ainda toca baixo, além do acordeão. Recentemente, Novoselic gravou com o guitarrista do R.E.M., Peter Buck, que trabalha em um disco solo. Ele também descreve a emoção que sentiu durante as gravações que fez, ano passado, ao lado de Grohl (baterista), o guitarrista Pat Smear (que tocou na turnê de "In Utero") e o beatle Paul McCartney. Novoselic tem orgulho de ser, conforme ele descreve, “o cara do NIRVANA", com uma ligação aos fãs, novatos, para a música e a história que ele fez ao lado da banda e dos seus amigos. “É um privilégio”, ele diz.
Mas quando questionado a respeito do lado ruim, ele e Grohl são obrigados a carregar o peso e a memória na ausência de Cobain. Novoselic responde com firmeza: "Kurt ainda carrega a música. Toda aquela música é um testemunho da visão artística dele. Não somos eu e Dave que estamos carregando a música do NIRVANA até os dias de hoje. É Kurt".
Jornalista: Você falou sobre como o relacionamento estava difícil dentro da banda no fim de 1992. Chegou a achar que nunca fariam um sucessor ao álbum “Nevermind” (2º disco, 1991)?
Krist: As coisas não estavam como de costume, mas tinha uma coisa que gostávamos de fazer..., gostávamos de tocar juntos. E era para isso que estávamos ali, de qualquer forma. Éramos uma banda. Gravamos as sessões de 1992 no estúdio Laundry Room com Barrett Jones, na casa dele. A gente nunca teve o nosso próprio estúdio para ensaiar, estávamos sempre roubando o tempo do estúdio de alguém. Ensaiávamos em Bainbridge Island, Tacoma ou Seattle, onde quer que achássemos uma vaga. Barrett tinha um gravador com várias faixas e se tivéssemos levado mais a sério, teríamos feito muito mais músicas.
Jornalista: Como as ideias de música entravam nos ensaios?
Krist: Kurt trazia as músicas e a gente ia trabalhando nelas. Algumas nós fizemos na hora a partir de "jams" e apenas com alguns ensaios elas encontravam forma. Tinha outra coisa a respeito de Kurt, ele podia ter um riff de guitarra, mas era muito bom em fazer a frase vocal. Ele costumava fazer a letra no último minuto, mas ele era tão bom em colocar o vocal, que nos ensaios, voilà, você já tinha uma música.
Assim que definíamos o arranjo, nunca mudávamos nada. Dá para ver isso em diferentes versões das músicas que gravamos ao vivo ao longo dos anos. Nunca mudávamos o arranjo. Quando a música ficava pronta, ficava pronta. Vamos tocar!
Jornalista: Seria justo dizer que o NIRVANA era a banda de Kurt? Ele era a voz principal, o compositor e a banda era a conexão dele com o mundo.
Krist: Isso é totalmente justo, totalmente correto.
Jornalista: E você e Dave foram os facilitadores, ajudando Kurt a fazer essa conexão...
Krist: Claro, eu fazia a minha parte. Eu sabia o que queria fazer com a banda. Posso te contar uma história? Acho que estou respondendo a pergunta também... Dave, Pat e eu não tocávamos juntos há 20 anos, até ano passado, quando nos reunimos com Paul McCartney para uma sessão que apareceu no documentário de Grohl, chamado “Sound City”. Fiquei tipo: “Meu Deus”. Eu amo esse cara e ele é um instrumentista canhoto, como Kurt. Comecei a tocar, tentando pegar o groove, usando a distorção do baixo para tentar deixar do jeito que eu queria. Dave estava tocando. Aí, Pat mandou um riff para mim e eu peguei. Eu joguei algo de volta para ele e ele pegou.
De repente, saiu uma música (“Cut Me Some Slack") e ela ficou pronta em 01 hora. Olhei para Dave e Pat, e meio que esqueci de Paul. Fiquei pensando que não fazia aquilo havia tanto tempo. Saímos por aquela porta 20 anos antes e depois voltamos e estava tudo lá ainda. Isso é na parte do documentário quando Paul diz: "Não sabia que eu estava no meio de uma reunião do NIRVANA..."
Jornalista: Depois da morte de Kurt, as pessoas começaram a enxergar pistas nas letras do álbum “In Utero”, sendo que na verdade uma parte das canções foram compostas durante um longo período de tempo, durante o qual se passaram vários estados de humores de Kurt e algumas coisas são até de antes do disco “Nevermind” ter sido lançado. O que você ouviu naquelas músicas, antes e depois da morte dele?
Krist: Eu nunca interpretei nenhuma música dele e Kurt não falava muito. Dava para interpretar o que quisesse das letras dele, sabe? Ouço muito essas histórias das pessoas: "Cara, quando eu estava em uma clínica para recuperação de drogados, fiquei ouvindo NIRVANA todo dia e isso me ajudou a superar”. Isso é ótimo, mas não vou ficar lhe dizendo o que a música quer dizer.
Eu chamava Kurt de “moinho”. Eu perguntava para ele: "Você ouviu o que acabou de cantar? Está contradizendo o que você cantou há 01 minuto atrás”. E Kurt ria dele mesmo porque ele sabia disso. Ele queria ser um astro do rock, mas ao mesmo tempo odiava isso.
Jornalista: Era difícil de dizer, às vezes, se ele estava apenas brincando com as palavras em forma de trocadilhos ou combinações em certa música, por exemplo?
Krist: Kurt dizia que nunca gostou de coisas literais. Gostava de coisas misteriosas. Ele cortava fotos de carne dos panfletos de supermercado e colava orquídeas nelas. O que isso significa? O que estava tentando dizer? Todas aquelas coisas no álbum “In Utero”a respeito do corpo..., ele gostava de anatomia. Se você olha para a arte dele, tem essas pessoas e elas são todas estranhas, como mutantes e bonecos meio assustadores.
Jornalista: Ele explicava essas coisas para vocês?
Krist: Não, nunca. Ele simplesmente ria. Ele sabia que ia fazer algo legal e ficava feliz com isso. Vai ver ele simplesmente gostava de deixar as pessoas tentando decifrar. Kurt teria que lhe dizer isso, eu não sei.
Jornalista: Durante as gravações do disco “In Utero”, Kurt explicava para Steve Albini (produtor do álbum) o que ele queria nas músicas? Ele era bastante específico com as canções?
Krist: Sim. Na música "Heart Shaped Box" existe um solo de guitarra. Conversamos longamente sobre isso... Steve e Kurt estavam contra mim. Eles colocaram um efeito estranho no solo da guitarra e eu achei aquilo repulsivo. Eu dizia: "Já tem este solo de guitarra ótimo aqui, por que querem colocar isso em cima? É uma música linda”. Discursos foram feitos e eles não concordaram em tirar. Foi uma discussão que durou muito tempo.
Jornalista: Kurt estava tentando fazer a música deixar de ser bonitinha? Ele era ótimo em compor letras e melodias, mas ele tinha esse ímpeto em deixar cicatrizes na música.
Krist: Era essa a estética, como as belas orquídeas com a carne crua em volta delas. É a mesma coisa. A música "Dumb" é uma canção linda e a canção "All Apologies" é ótima também. E aí temos músicas como "Milk It" ou "Scentless Apprentice" que são completamente perturbadas. Tem coisas para todo mundo em "In Utero"..., se bem que ele não é para todo mundo.
Jornalista: Por causa do que aconteceu depois, muita gente ouve o disco como se fosse um tributo. Você ouve assim também?
Krist: É um disco perturbador, mas ele não me assombra. Existe um imaginário ali que eu nunca conseguiria expressar para as outras pessoas, sabe? Eu estragaria tudo se dissesse: “Essa música quer dizer isso”. Eu roubaria a imaginação das pessoas e isso seria como trair Kurt.
Eu tenho a minha experiência pessoal com ele e as pessoas têm as experiências delas. Cada um de nós tem o direito de interpretar como quiser e nenhuma interpretação é a definitiva. Ele seria o único que poderia explicar, mas Kurt se foi. Ele nunca deu estas explicações quando estava vivo.
Confira o vídeo clipe da canção que foi o single de "In Utero", "Heart Shaped Box":