Deep Purple: resenha sobre o clássico disco "In Rock"
Em 1970, DEEP PURPLE introduziu uma nova era na música rock com o seminal álbum "In Rock". Aqui está a história da criação do disco que ajudou a inaugurar o hard rock e trilhou caminhos futuros ao heavy metal.
Hard rock, rock'n roll, funk rock, heavy metal, música clássica - são todos os gêneros que os fãs de música comuns de hoje considerariam como parte do vocabulário da vida cotidiana do DEEP PURPLE. Não há como fugir de todas estas formas - mesmo que você queira.
Assim como atos tão díspares como por exemplo, David Bowie ou PINK FLOYD, caem sob o manto do rock num termo que associamos principalmente a grandes riffs de guitarra, vocais poderosos e uma ampla variedade de estilos musicais e culturais, DEEP PURPLE também se enquadra perfeitamente nestes requisitos.
Porém, todo mundo sabe o que significa 'rock', mas nem sempre foi assim...
Nos anos 60, tinham aterrado o mundo e sua groupie com uma ressaca cultural colossal. A década de amor livre, protestos pacíficos e flores coladas nas armas dos soldados havia terminado, e os anos 70 sombrios - com drogas pesadas, conflitos políticos e o punk rock - estavam começando a avançar.
BEATLES tinha acabado de se despedir do mundo; Jimi Hendrix, o homem com maior probabilidade de levar a guitarra às massas, havia nos deixado recentemente; Jim Morrison, O Rei Lagarto, teria apenas alguns meses de vida. Bandas e artistas como CREAM, BLIND FAITH e Janis Joplin vieram e se foram em um flash de milhões de vendas.
Felizmente, 03 grupos britânicos - sim, britânicos, e não americanos - não estavam dispostos a deixar isso de lado. BLACK SABBATH, que de alguma forma "tropeçou" em um contrato de gravação e estava emitindo alguns sons realmente pesados nos amplificadores. Combinando um estilo primitivo com letras de comédia e horror, a banda com Ozzy Osbourne e Tony Iommi estava a caminho de ajudar a definir o heavy metal.
Enquanto isso, uma banda chamada LED ZEPPELIN havia lançado dois álbuns em rápida sucessão no final dos anos 60, ganhando a reputação de lidar sem esforço com influências folclóricas e blues, enquanto adicionava doses de heroísmo na guitarra e vocais histriônicos. Embora as pessoas estivessem chamando o LED ZEPPELIN de heavy metal, na verdade a simples menção deste gênero foi suficiente para deixar os membros da banda incomodados.
O 3º nesta trindade prolífera de bandas de rock britânicas e que também abriu os portões para uma nova era da música rock, foi o DEEP PURPLE com o guitarrista Ritchie Blackmore, o vocalista Ian Gillan, o baixista Roger Glover, o tecladista Jon Lord e o baterista Ian Paice, reconhecida há décadas como a formação clássica da banda.
A formação original do DEEP PURPLE, com o vocalista Rod Evans e o baixista Nick Simper, já tinha lançado 03 álbuns antes da entrada de Gillan e Glover no grupo, mas deram pouca dica do que estava realmente por vir.
Quando os primeiros frutos reais da 'nova' banda foram colhidos, surge o 4º álbum do DEEP PURPLE, "In Rock" (1970), dando início a novos manuseios de guitarra. Em comparação, onde o DEEP PURPLE também era hábil e ágil, o BLACK SABBATH parecia pesado e duro, e o malabarismo da música tradicional e de raízes do LED ZEPPELIN era um pouco difuso comparado aos seus "irmãos" musicais, assim, o disco "In Rock" cravou riffs históricos e também abriu o leque para os manuais da guitarra.
Acredito que bandas como IRON MAIDEN, DREAM THEATER, KISS, RAINBOW, METALLICA e muito mais, concedem uma enorme gratidão ao disco "In Rock".
Um vasto exército de fãs de rock concordaram e compraram em massa o álbum "In Rock". A cena foi montada para um novo tipo de música pesada, sintetizada pelos riffs corajosos e controlados de Blackmore e seu solo fluido na guitarra, o contraponto dos teclados de Lord com os gemidos de Gillan, e a seção rítmica entre Glover e Paice que é puro DEEP PURPLE.
Sobre 1970, Ian Gillan recordou numa entrevista para a revista Classic Rock em 1983, que: "Muita gente pensava da mesma maneira ao mesmo tempo", disse o vocalista com uma gargalhada nostálgica. “Você olha para os momentos e influências seminais e percebe que as coisas estavam ficando cada vez mais pesadas (sonora e liricamente), por causa de Jimi Hendrix e Bob Dylan".
Gillan continuou: "Você olha o poder daquelas músicas que Bob Dylan cantou, apenas com um violão e uma gaita, e depois com a força que outros artistas as interpretaram... E havia outras mensagens de pessoas como o THE DOORS, THE BEACH BOYS, John Lennon e toda a parte dos BEATLES. Tudo isso estava inclinado a uma postura mais rebelde".
Quanto ao DEEP PURPLE, os tempos estavam realmente mudando. "De repente, a música se juntou", lembra Gillan. "Foi a transição de nossos anos semi-profissionais e parecia que a música vinha do interior da banda, e não de fora".
O disco "In Rock" não era apenas o som de uma nova forma de música em construção, também marcou o ponto em que os principais membros originais saíram do grupo e montaram 02 bandas. O ex-vocalista Rod Evans juntou-se ao CAPTAIN BEYOND e liderou uma versão emulada do DEEP PURPLE, antes de desaparecer por causa de uma ação legal.
O baixista Nick Simper permaneceu em Londres e formou uma banda chamada WARHORSE, sendo que mais tarde ele se tornou pintor e decorador. Este último, em particular, falou numa entrevista passada sobre a maneira como ele foi expulso do DEEP PURPLE, mas todo esse conflito teve um lado positivo. Os sentimentos de ciúme, traição e raiva que cercaram a reunião da formação clássica, também foram os catalisadores que os estimularam a serem criativos. Acrescente a isso a ânsia de todos os membros da banda em obter reconhecimento por seu próprio trabalho - ou seja, este novo grupo estava preparado para decolar.
"Todos nós já estávamos ou tínhamos gravado com outros artistas antes do álbum 'In Rock', mas nenhum de nós tinha feito um disco desse tipo antes", oferece Gillan na mesma entrevista. “DEEP PURPLE era mais conhecido nos EUA devido aos covers que fazíamos, como das músicas 'Hush' (Joe South), 'Kentucky Woman' (Neil Diamond), 'River Deep Mountain High' (Ike & Tina Turner) e assim por diante, onde foram todos rankeados na lista da Billboard”.
Ele acrescentou que os 03 primeiros álbuns de estúdio do DEEP PURPLE - "Shades of Deep Purple" (1968), "The Book of Taliesyn" (1968) e "Deep Purple" (1969) - “foram muito admirados por aficionados como eu, mas o material foi amplamente despercebido pela mídia, então, havia um desejo de Ritchie, Jon e Ian de explorar um pouco mais essa área musical, sabe? Essa foi a razão da banda mudar de integrantes e de eu e Roger sermos convidados”.
Gillan continuou: “Roger e eu começamos a compor e tivemos a sorte de entender um pouco mais sobre rima e colocação das palavras. De um modo geral, entendemos que uma letra de música era diferente de um poema e que havia alguns sons de vogais que você tinha que evitar ao tocar uma nota alta, onde aprendemos sobre alguns dos valores percussivos das palavras e assim por diante".
Toda essa angústia não satisfeita de todos os membros da banda com os seus passados grupos e formações, significava que quando a nova formação revitalizada do DEEP PURPLE finalmente começou a tocar juntos, a centelha criativa entre os membros foi muito poderosa. Quando os ensaios começaram, a banda imediatamente notou algo diferente: um tipo de unidade que transcendia a música que eles estavam tentando criar.
"Foi um tipo de alegria, sabe?", Gillan sorri. “Tenho absolutamente boas lembranças desta época... Todos os ensaios em que estive antes eram sobre aprender músicas (covers), mas para o disco 'In Rock' era sobre compor e escrever músicas, da perspectiva de estar totalmente dentro delas e tocá-las de dentro pra fora”. Tentando definir esse fator intangível, ele diz que: "Há uma alegria em escrever e compor algo com 05 pessoas juntas, em vez de apenas uma. Essa é a grande coisa de uma banda, quando você se encontra naquele lugar, quando todos tocam a mesma partitura da canção deixando-a muito natural para canta-la, porque ela surge de um tal ritmo e você se junta a isso construindo à medida em que avança”.
Em uma entrevista concedida em 1971, Jon Lord olhou para trás com grande carinho por Gillan e Glover entrando na banda: “Quando Ian e Roger se juntaram, algo muito agradável aconteceu dentro do grupo. Antes, estávamos tentando nos desenvolver de uma maneira não natural, mas com a entrada deles compreenderíamos todo tipo de idéias diferentes de uma só vez, como uma criança em um jardim cheio de brinquedos, onde ela quer todos de uma só vez".
Lord continuou: "Agora, acreditamos em experimentos e emoções dentro da estrutura que nos propusemos neste momento específico do tempo. Sabemos que tudo isso vai mudar com o passar do tempo, tipo, obviamente iremos ampliar o nosso leque, certo? Vamos envelhecer e gradativamente iremos absorver diferentes influências em nossa música, mas espero não estagnar num ponto em que estaremos perfeitamente felizes e contentes por termos nos desenvolvidos naturalmente".
Cada membro da formação do DEEP PURPLE que gravou o disco "In Rock" teve uma contribuição indefinível e crucial para realizar nas músicas. Como o baixista Roger Glover lembrou nesta mesma entrevista para a revista Classic Rock em 1983: "Ritchie não era apenas o guitarrista, ele era um brilhante inovador... Coisas que ele compôs desafiam a descrição das coisas, sabe? Ritchie foi fenomenal no que estava fazendo no final dos anos 60 e início dos anos 70. Ele fez coisas que você nem pensaria, sendo um compositor dinâmico e magnético. Eu não acho que ele poderia ter feito tudo isso no vácuo sozinho, aquilo tudo exigiu o resto de todos nós, mas certamente eu darei a ele o que é devido. Ritchie era o personagem motivador da banda”.
O próprio Gillan, um personagem descontraído em pessoa, ainda possui as habilidades necessárias de frontman em abundância, as quais, segundo Blackmore numa entrevista em 1996, resultam de um infeliz incidente nos bastidores: “Costumo me culpar sobre isso... Estávamos em um clube, o Rock'n'Roll Circus, um lugar grande e pretensioso na França em 1970. Por alguma razão, mantenho esse amor muito infantil de brincadeiras em mim, porque eu amo piadas práticas".
O guitarrista continuou: "A certa altura, Ian foi se sentar e, porque eu vi que ele estava um pouco bêbado, puxei a cadeira para longe. Mas não percebi que havia uma grande queda de cerca de uns 4 metros atrás de nós e ele literalmente bateu a cabeça na queda. Ouvi a cabeça dele bater na mesa que era de pedra. Pensei que estava tudo acabado e que ele estivesse morto... Mas então, ele se levantou e lhe perguntei: 'Você está bem?' E ele apenas me disse: 'Sim, eu machuquei a minha cabeça um pouco...' Mas depois disso ele nunca mais foi o mesmo, sabe? Ele bateu a cabeça na queda e pareceu mudar como pessoa”.
As músicas para possível inclusão no álbum "In Rock" vieram espessas e rápidas, mas muitas vezes e sem nenhum esforço óbvio, designava o verdadeiro som da banda. Tornou-se um clichê para os compositores de bandas de rock naquela época afirmarem em entrevistas que na verdade eles não criavam música, era simplesmente canalizada através deles de alguma fonte não identificada, talvez sobrenatural - mas no caso do disco "In Rock", o clichê parecia ser verdade.
Questionado sobre como a banda concebeu a canção de abertura do álbum, Gillan encolhe os ombros: "Não sei como criamos a música 'Speed King', assim como não sei como Ian Paice ou Ritchie Blackmore começaram a toca-la. Eu vejo muitas estrelas jovens nos programas de auditório na TV hoje em dia negando qualquer conhecimento de ter anos de formação ou influências em seus primeiros anos de vida, o que é totalmente inverso ao que fizemos com o DEEP PURPLE, sabe? O que nós conseguimos foi uma mistura de tudo o que já tínhamos escutado antes".
Então, quais foram as principais influências no disco "In Rock"?
Afinal, o passado melódico leve de Gillan e Glover contrastou com a experiência aventureira, menos ortodoxa e mais desfocada dos outros músicos do DEEP PURPLE. "É uma acumulação de coisas", disse Gillan na mesma entrevista. “Jon Lord tinha o seu passado clássico em Jimmy Smith. Ian era Buddy Rich personificado. No meu caso, foram artistas e bandas como Elvis Presley, Little Richard, Chuck Berry, Ella Fitzgerald, Jerry Lee Lewis e FATS DOMINO. Mais tarde, surgiu a influência de Bob Dylan em Roger Glover. Quando se junta tudo isso, você cria algo único. Se você tirasse um de nós daquela formação, não seria a mesma coisa... Para mim, o rock é antes de tudo uma atitude”.
"Toda essa análise é muito difícil de se fazer, sabe? Você nunca está ciente dessas coisas no momento em que a está experimentando. É sempre uma retrospectiva objetiva, quando você se dá conta que esqueceu metade das coisas que aconteceram".
De qualquer forma, conforme Gillan também disse, o álbum "In Rock" não foi realmente desenvolvido no estúdio, foi criado e aperfeiçoado por dias e noites sem fim na estrada, quando as músicas foram colocadas em seus ritmos, onde na sua forma final tomou corpo após meses serem puxadas e dobradas em todas as direções.
"Se você vai escrever sobre o disco 'In Rock'", advertiu Gillan, "você precisa combinar a criação do álbum com as apresentações ao vivo. Elas foram muito mais importantes do que a gravação real, sabe? Gravar é quase um inconveniente, porque num certo momento você precisa se comprometer no estúdio”.
A importância do desenvolvimento das músicas nos shows não pode ser exagerada. Como Ian Paice havia dito nesta mesma entrevista em 1983: "Há muita qualidade física nas músicas que fizemos. As canções gravadas ficavam bem, mas no palco se tornavam brilhantes e ainda é assim. Elas são muito melhores para tocar ao vivo do que nunca e quando você as coloca na frente de uma audiência, especialmente uma grande plateia em arenas ou estádios, elas ficam novamente muito melhores".
Glover também explicou numa entrevista nos anos 90: “A única constante é a experiência ao vivo - música ao vivo. Em comparação com o rádio e a TV, esse é realmente o nosso contraste à música pop. Sempre há música ao vivo e sempre haverá música ao vivo, mesmo nos piores momentos do rock como em meados dos anos 70, quando tudo era música disco e para estar em uma banda de rock'n'roll você era muito velho e antiquado".
"Então, o punk rock apareceu (final dos anos 70) e chutou a bunda de todos, lembrando que o punk rock também foi uma experiência ao vivo. O mesmo aconteceu mais tarde nos anos 80, com o hair/glam metal ou o que você quiser chama-los... Ainda eram artistas que subiam ao palco e se apresentavam. Anos após anos sempre houve esse efeito cíclico na história do rock”.
Ainda há o tópico de que o processo de gravação foi um pesadelo para Ian Gillan antes de ingressar no DEEP PURPLE: “A primeira vez que gravei com a minha banda antes do DEEP PURPLE, foi um dos momentos mais horríveis da minha vida inteira e deveria ter sido um dos mais felizes, certo? Chegamos bem cedo no estúdio e estávamos mais elétricos do que nunca (obviamente) e carregamos uma van com equipamentos para instalarmos no estúdio que iríamos gravar, apenas para sermos perguntados 15 minutos depois: 'O que vocês estão fazendo?'"
"Estávamos descarregando o nosso equipamento e o pessoal do estúdio nos disseram: 'Não sejam ridículos. Vocês estarão tocando para o disco da gravadora e já temos um monte de músicos de estúdio aqui para gravar as músicas, certo? Queremos apenas as pessoas que cantam e o resto de vocês podem ir para casa'”.
Tendo passado pela experiência de ser tratado como uma bagagem desnecessária, Gillan estava determinado a não passar por esta situação novamente, onde ele se aproximou das sessões do DEEP PURPLE para gravar o disco "In Rock" com renovado entusiasmo.
As músicas que eles tinham agora valiam a pena grava-las corretamente com todos os membros da banda.
“Nós desenvolvemos as músicas desse álbum em nossas salas de ensaio no estúdio”, lembra Gillan, “e uma a uma elas começaram a serem introduzidas nos shows. Você podia ver o olhar no rosto de todos na banda de que era algo pelo qual todos estávamos empolgados”.
No caso de você estar pensando que eles desenvolveram uma ideia inflada de sua própria importância, não foram apenas eles que pensaram que o DEEP PURPLE estava envolvido em algo especial neste momento de sua carreira. "Bandas e fãs do underground sabiam tudo sobre o DEEP PURPLE nesta fase", disse Gillan. “Todos os outros artistas do mainstream também sabiam dessa 'nova' banda incrível que estava surgindo, então, quando fomos ao estúdio para gravar o disco 'In Rock', foi algo muito especial para nós. Para várias situações, as circunstâncias estavam certas para aquilo".
Há 50 anos atrás, os estúdios de gravação em geral ofereciam um ambiente diferente para as gravações digitais modernas de hoje em dia. Nos estúdios da BBC, por exemplo, o pessoal do estúdio pediu para todos da banda usarem um jaleco branco no estilo de laboratório para não "influenciar" no som e acústica. No lendário Abbey Road Studios, onde grande parte do disco "In Rock" foi gravado, o pessoal do estúdio foram um pouco menos rígidos - afinal, os anos anteriores ao álbum "In Rock" viram álbuns seminais dos BEATLES se formarem neste mesmo estúdio - mas mesmo assim muito ainda dependia da atitude do produtor e dos engenheiros de som do estúdio.
Felizmente para o DEEP PURPLE, que havia convencido os empresários e a gravadora a permitir que eles próprios produzissem o disco "In Rock" do jeito deles, eles se uniram a um jovem engenheiro de som chamado Martin Birch (que mais tarde encontraria fama como produtor de longa data do IRON MAIDEN e muitas outras bandas inovadoras).
“Sim, tínhamos um engenheiro de som dinâmico em Martin Birch”, afirma Gillan, “e estávamos trabalhando num estúdio com o qual todos estavam familiarizados. Estávamos muito mais em nossos próprios termos - não tínhamos um produtor 'adormecendo' sobre a mesa de som - então, apenas entramos e tratamos como uma sala de ensaios, sabe? Só com o passar dos dias que tivemos a sensação de que estávamos realmente gravando um disco”.
Gillan acrescentou: "Musicalmente, Martin Birch não precisou fazer nada. Ele não era um produtor nesse sentido, mas era um engenheiro de som com uma nova maneira de pensar. O que ele fez foi ouvir como uma bateria soava num certo local e depois tentar reproduzir o mesmo tipo de som no estúdio, tipo, era um pensamento revolucionário na época, acredite ou não”.
O fato dos membros do DEEP PURPLE - naquele momento todos com idade na casa dos 20 anos - terem recebido um engenheiro de som da mesma idade para trabalhar com eles, foi crucial - em vez de uma figura de autoridade revestida pelo laboratório da gravadora.
Gillan continuou: “Todo mundo era da mesma geração e todos pensávamos da mesma maneira. Era apenas a banda e Martin no estúdio. Ele queria criar e ajustar o microfone adequadamente, então, ele encontrou a parte mais brilhante em termos sonoros que a sala do estúdio poderia fornecer à bateria de Ian Paice e de alguma forma conseguiu que parecesse certo. Ele gravou num volume alto e não estava nem aí para os medidores, que já estavam ficando vermelhos por todo o lugar que você olhava”.
Quando perguntado se a banda conseguiu o som que estava procurando, Gillan ri: "Bom, eu não sabia como eu queria que soasse! Mas foi extremamente emocionante, tanto que o meu tio, que era pianista de jazz, correu gritando pela sala quando ouviu o disco pela 1ª vez, dizendo que era 'uma cacofonia de som'. Eu acho que as músicas precisavam de um pouco de retoque, tipo, a canção 'Speed King' era originalmente chamada de 'Kneel & Pray' ou algo assim e liricamente elas precisavam terem sido reforçadas... Mas isso não importava na época, era a atitude que contava. Para mim, a coisa toda foi a energia que veio através dessas músicas”.
Surpreendentemente, Gillan também revela que por baixo de toda a "arrogância" havia uma banda com certa falta de confiança: “Nós poderíamos fazer um bom show ao vivo, sem nenhum problema, mas psicologicamente era uma história diferente. Todos nós tivemos as nossas áreas de fragilidade”, ele confidencia, mas foi a própria essência da música do DEEP PURPLE, uma pretensão de invulnerabilidade que não se importava com nada, que os levou adiante.
"Há um bombardeio de emoções que gera neste estilo de vida, você sabe, que mais tarde seria chamado de 'arrogância' pela mídia", oferece Gillan. "Mas naquela época da vida, é esperado até certo ponto sentir essas coisas e você passa por muitas delas. É uma combinação de habilidade, sorte e estar no momento certo de nossas vidas, porque tínhamos experiência suficiente para podermos fazer isso e 'escapar' no palco. A maioria das pessoas ficam em pânico terrível quando sobem num palco, sabe?”
Solicitado a explicar a enorme atração comercial de sucesso do disco "In Rock" do DEEP PURPLE, Gillan é direto como sempre e ignorando qualquer pretensão de grandeza: “Aconteceu que tínhamos uma banda que a tornava coesa o suficiente para fazer este álbum".
Certamente é a música que conta, não é? "Não acho que tenha muito a ver com a música", Gillan reflete, "embora sem a música isso não teria acontecido. As pessoas são atraídas pela personalidade e muito disso tem a ver com a composição da banda. Se você tem um monte de caras que podem projetar o que estão fazendo de uma maneira um pouco diferente dos outros, provavelmente tem um pouco a ver com isso".
"Mas nós não percebemos nada disso, porque você é o que é quando tem 20 anos, certo? Foi um pouco mais tarde que percebemos que fazíamos parte de algo maior, que éramos grandes cabeças naquilo".
Quando o disco "In Rock" foi lançado em junho de 1970, os críticos se entusiasmaram com a composição confiante, a produção expansiva de engenharia e a arte icônica da capa do disco, que retrata os rostos dos cinco membros da banda esculpidos na superfície do Monte Rushmore, no lugar dos rostos dos presidentes dos EUA.
A deliciosa insolência desta imagem também atraiu milhares de compradores...
O álbum ficou na parada de discos do Reino Unido por 68 semanas, chegando ao 4º lugar. Depois do lançamento do disco "In Rock", veio o período de maior sucesso na história do DEEP PURPLE, com uma sequência monstruosa do que se tornou álbuns clássicos do rock'n roll, como: "Fireball", "Machine Head", "Made in Japan", "Who Do We Think We Are", "Burn" e "Stormbringer" (os dois últimos com o vocalista Coverdale e o baixista Hughes na formação).
Foram álbuns extraídos de uma rica safra num período de apenas 05 anos, fazendo o DEEP PURPLE numa das bandas de rock mais reverenciadas e respeitadas do mundo.
Só lembrando que Gillan e Glover retornariam para o álbum de reunião em 1984, "Perfect Strangers" (11º disco).
Durante a entrevista concedida em 1971, o tecladista Jon Lord - durante anos uma força tranquila, mas significativa no DEEP PURPLE - olhou perceptivamente para o disco "In Rock", ponderando: “Os três primeiros álbuns de estúdio foram agradáveis, mas sem direção. Ninguém sabia o que diabos o grupo estava fazendo. Em seguida, fizemos um esforço consciente para parar e pensar em escrever material que todos entendíamos".
"E o resultado foi o álbum 'In Rock', que foi realmente o nosso ato de palco. Esse foi o ponto de virada e o ponto em que acreditamos no que estávamos fazendo juntos. Não estávamos muito interessados em educar o nosso público, estávamos mais interessados em entretenimento e é somente disso do que se trata".
Ele acrescentou: “Aprendemos bastante com o disco 'In Rock'... Demorou 06 meses para fazer esse álbum e achamos que valeu a pena. Posso dizer honestamente que foi o primeiro álbum com o qual ficamos 100% satisfeitos. Isso nos deu muita confiança na época e durante esse longo tempo, aprendemos muito sobre nós mesmos, nossa música e o nosso senso de direção. Suponho que seja a nossa base agora para todo o nosso som e toda a nossa maneira de trabalhar, sabe? Realmente nós somos muito extrovertidos e gostamos de provocar a audiência, de nos envolver com ela...”
Alguns críticos da época esperavam que o disco seria influenciado classicamente, provavelmente por causa do interesse de Lord pela música clássica e também por causa de algumas estruturas de músicas que apareceram em álbuns anteriores - que acabaria realmente gerando a apresentação do DEEP PURPLE com a Orquestra de Londres duas vezes em sua carreira.
No entanto, Lord tinha deixado claro que esse não seria o caso, explicando: "Agora, sinto que estamos nos afastando da música clássica, porque nunca pretendemos que fosse uma parte da direção do grupo, tipo, foi apenas um experimento, certo? Como você sabe, nós experimentamos temas clássicos no começo de carreira e com estruturas de acordes de músicas clássicas, mas começou a ficar um pouco sem alma e atualmente não usamos mais nenhuma forma de música clássica, exceto talvez em nossos solos".
Quanto ao grande ato de palco do DEEP PURPLE - responsável mais do que qualquer outra coisa pelas músicas épicas lançadas no disco "In Rock" - Lord também acrescentou nesta entrevista em 1971: “Eu sinto que os grupos britânicos pelo menos se esforçam de alguma forma preocupados com a projeção e organização musical. Às vezes, pode ficar um pouco sem alma, mas no geral acho que é preferível à versão alternativa americana. Agora, o nosso grupo atual está tentando se tornar bom no que somos melhores, que é o que chamamos de rock and roll".
Em meados da década de 70, um modelo de rock pesado havia sido estabelecido com músicas extravagantes e arrogantes (também machistas e sexistas) sendo feitas por artistas que tomavam emprestado o projeto desenhado pelo disco "In Rock" no início da década - e como Gillan já afirmou, demorou algum tempo até o próprio DEEP PURPLE perceber.
Enquanto o BLACK SABBATH forjava o seu metal e o LED ZEPPELIN cobria todas as bases com os seus gloriosos vôos híbridos de fantasia, DEEP PURPLE deixou um rastro de caneta Technicolor fluorescente atrás deles para que milhares de filhotes (da garagem ao mainstream) o seguissem - e assim o fizeram.
Esta trinca de bandas fez germinar uma árvore genealógica do rock que logo se ramificou em gêneros e subgêneros...
Neste século atual, Ian Gillan é filosófico sobre o disco "In Rock", o álbum de outra época e local que desempenhou um papel significativo na formação de grande parte da topografia musical de hoje: “Este álbum foi único, porque foi o primeiro estúdio que aquela formação tinha gravado algo juntos, além da alegria que sentimos quando estávamos gravando-o que também se repetiu algumas vezes em álbuns posteriores, mas não em todos eles".
"Por exemplo, se você pegar o álbum 'Who Do We Think We Are' (7º disco, 1973, o último com a formação clássica antes do hiato)... Eu coloco este álbum para tocar de vez em quando e não tem músicas ruins. Na verdade elas são bem mais desenvolvidas, mas falta um elemento esquivo que é chamado de 'espírito da banda'. É apenas uma série de músicas lançadas de forma direta num disco".
Gillan finalizou, dizendo: "Mas com o álbum 'In Rock' e também com os discos 'Fireball' e 'Machine Head', e talvez também com o disco 'Perfect Strangers' e os últimos álbuns que gravamos mais recentemente, houve exatamente esta mesma alegria, sabe? Escrevendo, compondo e produzindo as músicas com toda a banda. Das outras vezes não tínhamos percebido que tipo de poço estávamos nos afundando...”
Ainda bem que o DEEP PURPLE não acabou neste poço, pois o hard rock que eles criaram veio para ficar brilhando para sempre na superfície.
Track-list:
1. Speed King
2. Bloodsucker
3. Child in Time
4. Flight of The Rat
5. Into The Fire
6. Living Wreck
7. Hard Lovin' Man
Detalhe: a clássica canção "Black Night" e o seu lado-b, "Cry Free", foram gravadas nesta mesma sessão de estúdio, mas lançadas somente em single para divulgar o álbum "In Rock".